Carmen Miranda e Estrella, ao longo do tempo, recebem duplo tratamento, que se traduz na passagem de uma representação kitsch para uma representação cult. Na condição de artistas que se comportavam de maneira kitsch, elas se destacavam ora pelo sentimentalismo das letras dos boleros e pelo estilo marginal de vida (Estrella), ou pela exposição caricata do corpo e pela fantasia de baiana como ícone tropical (Carmen). Interpretadas como imagem cult, as duas intérpretes ganham, respectivamente, de Cabrera Infante e de Caetano Veloso, o estatuto de personagem literária de Três tristes tigres, e de emblema do Tropicalismo. O que se condenava como sinal de mau gosto e descompasso com os ideais estéticos e políticos do momento passa a ser eleito como manifestação de desejos populares. A reação a qualquer preconceito de ordem musical será protagonizada por Caetano e o grupo tropicalista, pelo tratamento parodístico reservado tanto aos ritmos tradicionais da canção latino-americana, como o bolero, a rumba, o samba-canção, quanto à revitalização do lugar ocupado por Carmen na cultura brasileira.
A encenação kitsch de um Brasil pintado de palmeiras e bananas compunha a leitura parodística dos trópicos, apontando, pela diferença, que essa gente bronzeada também poderia mostrar seu valor. Os empréstimos estrangeiros serviriam de alimento pop para se abandonar a defesa ingênua de uma música autenticamente nacional. Carmen Miranda funcionaria como símbolo dessa diferença residual e midiática representada pelas culturas dos países periféricos frente aos demais. A atriz seria, nas palavras de Caetano, "um emblema tropicalista, um signo sobrecarregado de afetos contraditórios que eu brandira na letra de "Tropicália", a canção-manifesto, Carmen Miranda surgia nesses discos como uma reinvenção do samba".
O debate sempre revigorado entre as posições nacionalista e cosmopolita no âmbito cultural corresponde a outras preocupações vinculadas à dimensão local e global dessas manifestações. Se hoje a situação política dos países latino-americanos não mais se pauta pela ditadura militar subvencionada pelos Estados Unidos, as duas décadas vividas sob o fantasma do imperialismo ianque determinaram o nível de repulsa pelos irmãos do norte. É nesse clima de Guerra Fria que se processa a reivindicação de vanguarda para a Cuba pós-revolucionária frente à política colonialista norte-americana. A narrativa artística e cultural do período se formou simultaneamente à narrativa política, graças à articulação engenhosa entre elas. O projeto de ocupação do espaço cultural latino-americano pelos seus agentes contou, a partir da Segunda Guerra Mundial, com a interferência dos Estados Unidos, entendendo-se melhor os embate ideológicos impostos pela Guerra Fria.
O Tropicalismo, movimento musical de vanguarda liderado por Caetano Veloso, com sua poética libertária e alto poder de desconstrução de lugares estereotipados e canônicos, parodia o nacionalismo ufanista, o purismo discursivo e se impõe como um dos marcos do desejo de ruptura que norteará a carreira do artista. Na canção que dá título ao movimento, “Tropicália”, evoca-se o espaço carnavalizado de Brasília, relido como alegoria da nação e que se define pela ruína e pela apropriação residual de seus valores. A convivência conflituosa entre o arcaico e o moderno, o campo e a cidade, o local e o cosmopolita dimensionam a abertura da música popular para além de seus limites geográficos. O clima alegre instaurado pelo movimento e pela canção que o antecipa, “Alegria, alegria”, atua como denúncia das mazelas sociais e evoca a eficácia das guerrilhas e estilhaços revolucionários.
Nesse ambiente de euforia e desbunde tropicalista, a literatura, o teatro e o cinema desfaziam a almejada integração americana proposta pelos Estados Unidos, inserindo a criatividade revolucionária dos trópicos. Colocando-se na posição paradoxal – e inteligente – diante da cultura americana, seus intérpretes realizaram, talvez, a mais lúcida integração entre norte e sul. Sem se dobrar à imitação, as manifestações artísticas do grupo lançam um hino de amor/ódio às importações americanas, resgatando seus valores e assumindo a mescla cultural como forma de respeitar diferenças e de assimilar, antropofagicamente, o que o outro pode oferecer. O rock dos anos de 1950 conversou com os tropicalistas na mesma proporção que o ritmo negro do jazz e das rumbas. Caetano Veloso sempre defendeu o fascínio que a música americana exerceu na sua formação e no imaginário de toda uma geração. José Agripino de Paula, no romance PanAmérica de 1967, constitui um dos mais instigantes textos do momento, ao se filiar à proposta da literatura pop e da contra cultura. No entender de Evelina Hoisel, outra face do pan-americanismo aí se revela, e se coloca como precursor da futura globalização dos nossos dias: “Um dos fios construtores de PanAmérica focaliza a filmagem de uma superprodução de Cecil B. de Mille, a Bíblia, e, nas páginas iniciais – cenário e bastidores de um estúdio hollywoodiano – circulam astros de cinema que constituíram a mitologia e a iconografia da cultura de massa daquele período.”
Strangers in the night
Fina Estampa, disco de 1994, redefine o olhar de Caetano Veloso frente ao arquivo musical latino-americano. Numa viagem sentimental e nostálgica, o intérprete revitaliza sons e ritmos pontuados pelo glamour dos anos cinqüenta e de um passado pré-revolucionário e pós-utópico. Seleciona canções que vão do cubano Lecuona ao argentino Piazzolla, recorte que se desenha como autobiografia musical. Fecha o cd com a composição de 1988, “Vuelvo al sur”, de Piazzolla, como forma de justificar o projeto do disco. Boleros, rumbas, guarânias ressurgem na voz do intérprete de forma particular, pela presentificação de tempos passados. Estranhar o conhecido e revitalizá-lo são uma das mais freqüentes atitudes de Caetano como leitor atento da tradição musical a qual pertence. Reafirma, assim, a sedução pelo deslocamento constante de lugares de enunciação, provocando o estranhamento no ouvinte e redesenhando seu perfil cosmopolita e “estrangeiro”. Restaura o ritmo e os versos de um continente que nunca deixará de ser estranho aos outros, por se mostrar, culturalmente, estranho a si próprio. Sem endossar a volta romântica ao passado nem a uma nostalgia petrificada, Fina Estampa aguça o sentimento contemporâneo de uma retomada crítica e de uma reverência à tradição de uma América mais feliz e menos pobre.
Dez anos depois, no momento em que Os Estados Unidos invadem o Iraque, Caetano grava A foreign sound, “para lançar um olhar sobre a americanidade americana”, nas palavras de Eucanaã Ferraz. Prevalece a proposta tropicalista de romper preconceitos de toda ordem em se tratando de cultura, pelo exercício livre da história pessoal do cantor, pela homenagem, à sua maneira, às canções americanas que embalaram os bailes de sua geração. A interpretação obedece a uma escolha pessoal, ao inserir percussões baianas e instrumentos nativos nos arranjos das canções, estratégia perfeita para a prática da leitura crítica como traço singular.
A apropriação amorosa e irônica do repertório clássico americano se vale de procedimentos que deslocam e condensam ritmos, diferentes línguas e o feeling musical herdado da melhor tradição da cultura negra das Américas. No encarte ao disco, o cantor expressa o desejo que o levou a gravá-lo: “Por todo o mundo há pessoas que gostariam de achar um meio de agradecer à música popular americana por ter enriquecido e embelezado suas vidas. Muitos tentam. É o que eu faço aqui.”
A modernidade eurocêntrica, ao servir de modelo para se justificar o descompasso e o atraso da recepção artística nos paises periféricos, se encontra hoje enfraquecida por manifestações culturais que deslocam o compasso entre centro e periferia. Renovam as relações no campo musical da América Latina, contribuindo para a integração diferenciada entre variadas concepções musicais. Ou entre músicos das Américas, congregando tendências ditas primitivas e locais com a abertura trazida pelas modernidades eletrônicas e revolucionárias da música contemporânea. Sob o signo da tensão entre categorias vistas como opostas, o discurso musical se configura de modo heterogêneo, disposto a negociar as contradições e não aderir às oposições. As mudanças tecnológicas e a inauguração da era digital neste início de século não só desfazem propostas identitárias como revelam ser o discurso musical capaz de dispersar os sons dos lugares de origem, o que resulta na condição de esquizofonia dos nossos tempos.
A retomada da tradição musical latino-americana inevitavelmente se apóia na leitura dos vazios e intervalos de intérpretes excluídos pelo cânone, representantes de estilos e ritmos marginalizados pela racionalidade moderna. Entre eles se encontram os boleros da cubana Estrella, do pianista cubano de ritmos caribenhos, Bola de Nieve, e de vários outros esquecidos sambistas brasileiros.
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*Eneida Maria de Souza é professora titular de Teoria da Literatura na UFMG. Autora, entre outros títulos, de Crítica cult, Pedro Nava - o risco da memória, Tempo de pós-crítica. Pesquisadora 1A do CNPq.
E-mail: eneidas@pib.com.br
Enviei uma parte do texto que saiu na CRONÓPIUS(literatura e arte) e foi inicialmente publicado no caderno Pensar do jornal O Estado de Minas.
O texto é mais extenso veja:
Cronópios